JUSTIÇA – Prova ilegal baseou prisão de taxista que informou sobre blitz, diz juiz em decisão

O táxi trafegava nas proximidades do Conjunto Joaquim Leão com dois passageiros. De repente, o retrovisor indicava ao motorista duas viaturas se aproximando em alta velocidade. Não tardou para que o bloqueassem pela frente e por trás. Três agentes da Secretaria Municipal de Transportes e Trânsito de Maceió (SMTT) teriam descido para realizar a vistoria do documento pessoal e do veículo, solicitando também o acesso ao celular, que só teria sido entregue após ameaça de condução à delegacia. A checagem das mensagens levou à prisão em flagrante do taxista pela Polícia Militar de Alagoas (PM-AL), no dia 01 de fevereiro, pelo suposto crime de informar sobre blitz em grupo de whatsapp.  

O relato acima consta nos autos judiciais e é do segundo taxista preso (cuja identidade será preservada) na esteira da operação integrada do Batalhão de Polícia Rodoviária (BPRv), Batalhão de Policiamento de Trânsito (BPTran) e SMTT. Três dias antes, no dia 29 de janeiro, o primeiro motorista havia sido detido na rodovia AL-101 Sul, em Marechal Deodoro. De acordo com as informações preliminares divulgadas, eram três os condutores buscados. Eles seriam os supostos responsáveis por administrar o grupo.

“Ele tem um grupo de whatsapp e eles [taxistas] ficam se comunicando. Quando veem uma guarnição da SMTT, eles falam: ‘tem uma abelhinha’. Não foi com o intuito de atrapalhar a segurança pública. Ele se sente perseguido porque é taxista. O pessoal já sabe o número da placa”, conta Waleria Ferreira, advogada do segundo taxista preso.

Quando o BPRv anunciou com toda a pompa, no dia 01 de fevereiro, a prisão de mais um taxista por ter informado sobre blitzes em grupo de whatsapp, teve até foto de agentes perfilados e segurando armas. Após a primeira detenção, o comandante do BRPv, Coronel Liziário, utilizou do espaço na imprensa para alertar a quem pratica a mesma conduta para que parasse, pois a polícia estaria atenta.

Trata-se de mais um exemplo em que o Estado se agiganta sobre o indivíduo, utilizando do seu braço policial para colocar em risco até mesmo direitos fundamentais.

O advogado criminalista Roberto Moura vê com preocupação todo esse movimento, enquadrando o episódio no que chama de criminologia midiática, conceito do juiz argentino Zaffaroni, por dois motivos em especial.

“O primeiro se refere ao processo de desinformação aliado ao sensacionalismo jornalístico, algo bem perceptível nos casos em tela, pois juridicamente a conduta sequer é crime. Já o segundo motivo se trata da construção de bodes expiatórios através da criminalização para determinado controle social“, analisa Moura.

O que mais interessa na operação integrada é o que está por trás das câmeras, como costuma suceder. O caso repercutiu no meio jurídico, principalmente pelo enquadramento como crime do ato de informar sobre blitz em grupos de WhatsApp.

A PM sustentou no noticiário que comunicar a ocorrência de blitzes é uma conduta que se enquadra no art. 265 do Código Penal, ou seja, o crime de atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública. A pena é de reclusão de um a cinco anos, além de multa.

Para o advogado e professor de direito penal e processo penal, André Sampaio, há uma série de razões que levam ao entendimento de não haver crime em comunicar sobre blitz no whatsapp. Uma delas é de que estaria interpretando extensivamente o que está escrito em prejuízo do réu, o que é vedado pela lei brasileira.

“Informar sobre blitz não é crime por alguns motivos. Primeiramente, o artigo em questão é de constitucionalidade bastante duvidosa. Ele fala em “Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública”. Trata-se, sem dúvida, de tipo penal bastante aberto, pois além de ser mero crime de atentado – bastando a mera tentativa para configurar crime – se utiliza de expressões vagas como “qualquer outro [serviço] de utilidade pública”. Além de que precisaríamos interpretar a norma de forma extensiva para equiparar as blitzes, atividades esporádicas de fiscalização, a serviços públicos contínuos como o fornecimento de água e luz, por exemplo”, afirma Sampaio.

“Por fim, tramita no Congresso Nacional o PL n. 3734/19, que visa justamente criminalizar tal conduta, ou seja, enquanto não for aprovado e entrar em vigor, estamos falando de fato não acobertado pela lei penal”.

O Projeto de Lei nº 3734/19 é de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede/ES) e pretende alterar o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) para inserir a conduta de “divulgar ou disseminar informação relativa a local, data ou horário de realização de blitz”. Haveria aumento de pena caso houvesse a utilização de meio de comunicação em massa como a internet, aplicativo ou rede social.

Na mesma linha de pensamento, nem mesmo o Ministério Público de Alagoas (MP-AL) endossou a visão policial. Atuando como fiscal da ordem jurídica, o promotor Carlos Tadeu se pronunciou pela atipicidade, quando não há crime, na audiência de custódia do segundo taxista preso. Ele disse entender que o artigo 265 do Código Penal é vago e fora redigido há muitos anos, sem qualquer informação sobre trânsito ou WhatsApp. Ao fim e ao cabo,  opinou pela não homologação do auto de prisão em flagrante e pela concessão da liberdade provisória.

Prova ilegal baseou prisão em flagrante do taxista

No Brasil, quem é preso em flagrante tem o direito de ser levado a um juiz em até 24h após a sua prisão, a fim de se apurar eventual ilegalidade. É a popular audiência de custódia. Assim, depois de passar a noite na Central de Flagrantes, no bairro do Farol, o segundo taxista preso esteve no Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) no dia 02 de fevereiro, no plantão judicial do domingo.

A análise dos autos revela que a comemoração policial não passou de um ato fugaz, que dificilmente passaria pelo crivo judicial.

Depois de ouvir as partes, o juiz Rodolfo Osório destacou entendimento reiterado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que, sem a prévia autorização judicial, são nulas as provas obtidas por meio da extração de dados e de conversas registradas no WhatsApp. Da mesma forma, não visualizou consentimento do taxista no acesso ao celular. Entendendo pela ilegalidade da prova, o magistrado não homologou a prisão em flagrante e relaxou a prisão, determinando a expedição do alvará de soltura.

Para Moura, a prisão em flagrante baseada em uma prova ilegal foi mais um ato da sucessão de erros da operação que estava há quatro meses na fase de investigação.

“No âmbito da dogmática penal estamos diante de uma interpretação extensiva de uma norma penal em branco (aberta) para restrição de direitos e garantias fundamentais, algo completamente vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Já pelo olhar do direito processual penal, em alguns casos não estavam configuradas as condições para a ocorrência da prisão em flagrante, pois algumas mensagens tinham sido enviadas há tempos. Por fim, cabe destacar que as provas obtidas foram completamente eivadas de nulidade, pois sequer possuíam autorização judicial para realização de perícia nos smartphones, tornando a obtenção da prova completamente ilícita, gerando nulidade na prova constituída e em todas as outras decorrentes dela”, asseverou.

A conduta dos agentes envolvidos no caso acende a discussão se caberia a aplicação da Lei de Abuso de Autoridade, sancionada em 2019. Entre os inúmeros artigos, o diploma legal estabelece diversos crimes para os agentes públicos no exercício da função ou a pretexto de exercê-las. Analisando o caso, Sampaio não vislumbra hipótese de enquadramento.

“Parece-me que há dois tipos penais possivelmente aplicáveis ao caso, o do artigo 9º – ‘Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais’ e o do artigo 25 – ‘Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito’, mas se analisarmos o elemento subjetivo vamos concluir que, para que sejam aplicáveis ao caso, deve haver prova de conhecimento do entendimento jurisprudencial acerca da ilicitude da prova obtida acessando o aplicativo WhatsApp sem autorização do titular do aparelho. Como se trata de entendimento jurisprudencial, ou seja, dos tribunais, e não de expressa proibição legal entendo ser também inadequada a aplicação da Lei ao caso”, opinou.

Ao fim da audiência, ficou definido que o Ministério Público de Alagoas, através do setor de controle da atividade policial, seria notificado do termo da audiência de custódia a fim de expedir ofício à SMTT sobre as abordagens dos agentes, sobretudo daqui em diante.

Agora, após o plantão judiciário, o processo será redistribuído para uma das varas da justiça alagoana. A polícia concluirá o inquérito e o Ministério Público decidirá se oferece a denúncia, solicita novas diligências ao delegado ou faz o requerimento de arquivamento ao (à) magistrado (a).

O outro lado

Polícia Militar

A Mídia Caeté entrou em contato com a assessoria da Polícia Militar de Alagoas para obter respostas aos questionamentos da reportagem. Até o momento, não houve resposta.

SMTT

Por e-mail, a assessoria de imprensa da SMTT disse não ter recebido o ofício do Ministério Público. O órgão não se pronunciou sobre a eventual instauração de procedimento interno para apuração da conduta dos agentes.

Por:Mídia Caetê